Era um dos poucos portugueses a trabalhar para a Comissão Europeia antes da adesão. Recorda o entusiasmo e a importância desses dias e diz que era mais difícil explicar Bruxelas a Portugal do que Portugal a Bruxelas.
João Vale de Almeida foi recrutado pela Comissão Europeia em 1982, ainda antes da adesão de Portugal às comunidades europeias. Esteve mais de 40 anos ao serviço da UE, tendo sido embaixador nos EUA, nas Nações Unidas e no Reino Unido, logo a seguir ao Brexit. Foi também chefe de gabinete de Durão Barroso quando este era presidente da Comissão Europeia. Trabalhou diretamente com os presidentes Jacques Delors, a quem ‘vendeu’ o país para acelerar adesão portuguesa, Jacques Santer e Romano Prodi.Olhando para o seu percurso profissional é quase pouco dizermos que é crème de la crème da diplomacia portuguesa. Foi condecorado pelos Presidentes da República, Cavaco Silva, com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique em 2011 e por Marcelo Rebelo de Sousa com a Grã-Cruz da Ordem de Camões em 2022. Hoje, vive em Bruxelas, dá aulas em algumas das melhores universidades do mundo, como Columbia ou Cambridge, e em abril ado, publicou no Reino Unido, o livro The Divorce of Nations. O entusiasmo por Portugal como parte integrante e decisiva do projeto europeu nunca esmoreceu, como se pode ver na entrevista que deu ao Nascer do SOL.
Como recorda o período que antecedeu a da adesão, quando já estava ao serviço da Comissão Europeia?
Para pessoas como eu, que tinha 17 anos no 25 de Abril, a adesão à Europa era uma etapa absolutamente fundamental. Não há democracia sem desenvolvimento, não há desenvolvimento sem democracia, e não há nem desenvolvimento nem democracia para um país da dimensão portuguesa sem integração europeia. São precisas estas três dimensões. E na altura da adesão estavam as três ligadas porque tínhamos ganho a democracia 11 anos antes, com alguns sobressaltos no crescimento democrático. Portugal era um país substancialmente atrasado, em termos de desenvolvimento económico e social.
E acha que esses tais sobressaltos tiveram impacto nas negociações?
Não, as negociações demoraram, se bem me lembro, quase nove anos, o mesmo para a Espanha e, antes, para a Grécia. Era um período relativamente normal, dado a complexidade da adaptação do acervo comunitário para Portugal, mas também com algumas, sempre o normais, inércias da própria União Europeia.
Como era o ambiente na altura em Portugal em relação ao projeto europeu?
Havia um grande entusiasmo pela adesão à Europa. Em termos de forças políticas, talvez o P fosse o único que tinha alguma oposição, ou pelo menos alguma resistência, mas de resto havia um largo consenso nacional sobre o destino europeu de Portugal. Era, no fundo, completar o 25 de Abril. Era uma componente que faltava da regeneração de Portugal, de alguma maneira, depois de 49 anos de ditadura e de atraso.
No âmbito da sua missão na União Europeia, que começou em 1982, participou nas negociações da adesão?
Não participei diretamente, mas acompanhei-as do lado comunitário. Era um dos poucos portugueses a trabalhar para a Comissão Europeia em Lisboa. O meu acompanhamento do processo foi perceber o que é que os meus colegas de Bruxelas iam fazendo e a relação que tinham com Portugal. Havia um grande empenho de Bruxelas para que a adesão de Portugal e de Espanha fosse um sucesso. Toda a gente queria ajudar, sobretudo em relação a Portugal, que éramos um país mais pequeno...
E como é que via esse interesse de Bruxelas em nós, qual era a nossa mais-valia para a CEE?
Havia uma grande simpatia em relação ao nosso país, porque tínhamos regressado à democracia há pouco tempo e existia um largo consenso das grandes forças políticas europeias em apoiar a Portugal. E o objetivo de Bruxelas é sempre que o alargamento seja um sucesso, nunca há uma perspetiva de complicar as coisas para além do que é necessário. E o que é necessário é garantir que a adesão não cria problemas, nem ao país, nem à União Europeia. O meu papel nessa altura era de adido político da embaixada da Comissão Europeia. Tinha de explicar Portugal a Bruxelas e Bruxelas a Portugal.
O que era mais difícil, explicar Portugal a Bruxelas, ou Bruxelas a Portugal?
Explicar Bruxelas a Portugal, claramente. Porque era toda uma nova realidade, pouca gente conhecia os dossiers europeus. Havia um grau de desconhecimento sobre os assuntos europeus que era preciso colmatar. Do lado de Bruxelas, Portugal era um país novo, as pessoas conheciam mal. Viajei muitas vezes com Jacques Delors, quando vinha a Portugal inaugurar obras dos fundos de pré-adesão e em cada viagem de carro com ele eu não parava de falar, a mostrar-lhe tudo, a explicar as coisas todas... a vender Portugal. Ia explicando a história portuguesa e as nossas realidades, conforme atravessávamos o país.
A propósito desse desconhecimento na altura da pré-adesão, não deixa de ser curioso a taxa de participação, poucos anos depois em 1987, nas primeiras eleições europeias em Portugal, tenha sido significativa, ultraando os 70%. Se formos comparar com agora...
Sim, não vale a pena comparar. Na altura, havia um entusiasmo enorme. Era como lhe dizia, era completar o 25 de Abril, completar a Revolução democrática, em termos de desenvolvimento e da adesão à Europa. Foi um período empolgante, mas complicado do ponto de vista istrativo, burocrático, técnico e político, as coisas foram difíceis e foi preciso um grande esforço do lado português para fechar as negociações a tempo e houve um compromisso do Bloco Central para tornas as coisas mais expeditas e mais fáceis...
E a Bruxelas queria que adesão dos dois países ocorresse ao mesmo tempo...
E nós pagámos um preço por isso. Talvez Portugal se tenha atrasado um ou dois anos por causa de Espanha, porque a sua dimensão geográfica e a dimensão da sua agricultura, em particular, levantavam problemas a alguns países.
Principalmente à França.
Exato. Mas do lado comunitário não fazia sentido fazer dois alargamentos separados num ano ou dois, portanto a coisa foi conjugada. E houve um empenho muito grande, quer do lado de Bruxelas quer do lado de Portugal, era um projeto muito empolgante. Às vezes, em Portugal, há algumas dúvidas que se colocam. Imagine só o que é que seria Portugal hoje.
Como é que imagina que seria Portugal se não tivéssemos assinado a adesão em 1985?
É difícil imaginar, no contexto atual, o que seria Portugal se não fosse membro da União Europeia, se não fosse membro do Euro e se não fosse, também, membro da NATO, alargando o raciocínio. Seria um país muito pequeno, muito periférico, muito isolado, e, por isso, muito vulnerável a todos os choques, económicos, monetários e geoestratégicos. É melhor nem pensar como é que seria Portugal assim.
Qual é o balanço que faz destas quatro décadas da nossa integração europeia?
Não havia alternativa, se nós queríamos que Portugal se desenvolvesse como aconteceu em relação a todos os índices económicos e sociais. É preciso comparar o país de meados dos anos 80 com de agora. Não estou a dizer que tudo é perfeito. Há muita coisa a melhorar. Mas não há comparação.
Quais os momentos que destaca nestes 40 anos?
Começando pelos positivos, acho que os primeiro dez anos foram os mais empolgantes e os mais bem-sucedidos, foi também a década que se seguiu à adesão, ou seja a transformação foi mais evidente, mas mais evidente foi também a mobilização de esforços em Portugal, para que essa transformação acontecesse. Depois, no princípio do século, as coisas abrandaram um pouco. Em termos de capacidade da resposta, crescemos menos, convergimos menos, em alguns aspetos até divergimos da média europeia, e depois aconteceu o período mais difícil, que é, obviamente, aquele relacionado com a crise financeira global, depois com a crise das dívidas soberanas e com o, digamos, colapso financeiro de Portugal. Os anos difíceis de recuperação foram, naturalmente, os mais difíceis de todos, destes 40 anos. Nos últimos anos, enfim, acho que há um deficit de reformas em Portugal e, portanto, nesse sentido parece que o país perdeu algum tempo e algumas oportunidades. Espero que agora, com uma perspetiva de alguma estabilidade política nos próximos anos, se possa voltar a um espírito reformista e de empenhamento naquilo que Portugal ainda tem que fazer, para convergir o mais possível com a União Europeia. Mas, globalmente nestes 40 anos, são os 40 anos da minha vida profissional também, e, portanto, acho que a minha geração fez um bom trabalho.
Olhando para o seu percurso, vemos que era a si que recorriam para as missões difíceis. Foi o primeiro embaixador em Washington, depois do Tratado de Lisboa. Foi também o primeiro embaixador em Londres, após o Brexit. Como é que vê essa confiança da UE em si?
Não tive realmente a vida fácil, mas foi uma grande honra, foram grandes oportunidades, ter a confiança das autoridades de Bruxelas e também dos outros Estados-Membros para representar a UE nos Estados Unidos, nas Nações Unidas, no Reino Unido. Antes disso como o chefe de gabinete de Durão Barroso presidente da Comissão Europeia, como diretor-geral, enfim. Tenho muita honra nisso, muito orgulho, e acho que faz também parte da reforma de mentalidades em Portugal, acreditar no esforço e na capacidade das pessoas com trabalho e com vontade de alcançarem em seus objetivos. Agora, em termos de europeus, um país com a dimensão de Portugal deve saber aproveitar as oportunidades que são postas à nossa disposição e tem de estar sempre na linha da frente. É um facto, não apenas simbólico, orgulho-me muito disso, que o tratado atual que rege a União Europeia, seja o tratado de Lisboa. E que o presidente da Comissão Europeia, durante 10 anos, tenha sido um português. E que agora um português seja presidente do Conselho Europeu. E a um nível mais modesto que os lugares mais importantes da UE também tenham sido ocupados por um português. Tudo isto deve encher-nos de orgulho, mas também prova que um país como o nosso tem que apostar sempre no trabalho, qualidade e excelência. Acho que esse é o mantra do sucesso de um país como Portugal. Temos que continuar a apostar e ao nível da diplomacia para pôr os melhores profissionais nos sítios mais relevantes e cada um de nós é, no fundo, um embaixador de Portugal.